Em "A luta", Norman Mailer enfrenta o campeão dos
pesos-pesados, o rei do mundo, Muhammad Ali
HELIO GUROVITZ
O vídeo
está lá no YouTube para quem quiser ver a luta. O documentário Quando
éramos reis venceu o Oscar e deixou na memória o refrão Ali,
buma iê (Ali, mata ele). Mas o livro, bem, nada se compara ao
livro. O campeão dos escritores, Norman Mailer, enfrenta o campeão dos
pesos-pesados, o rei do mundo, Muhammad Ali, o maior de todos, ponto.
Desacreditado, Ali tinha 32 anos quando entrou no ringue contra George Foreman,
para recuperar o título mundial. Sete anos mais novo, socos de uma potência
jamais vista, Foreman era campeão invicto. De 40 lutas, vencera 37 por nocaute.
Havia mais de dois anos, nenhum rival passava do segundo assalto. Mas Ali, bem,
Ali era Ali. Mais, bem mais que um boxeador. Ativista da causa negra,
convertido ao islã, misto de símbolo e herói, destemido, belo, forte, corajoso
– o negro que não se submete ao poder branco. Agressivo, falava o que lhe dava
na telha – e como falava. No ringue, “flutuava como borboleta; ferroava como
abelha”. Sua agilidade nas pernas era lendária – “Vou dançar, e vou dançar, e
vou dançar e dançar…”. Foi campeão até 1967, quando o título lhe foi usurpado.
Suspenso do boxe pela recusa em servir no Vietnã – “Nenhum vietcongue jamais me
chamou de ‘nigger’ (termo racista para negro)”. Nunca se conformou. Era
o maior, ponto. Enfrentar Foreman era sua chance de prová-lo. De novo. “Ali,
buma iê.” O embate tornou-se a luta do século.
O
ex-presidiário e agitador cultural Don King promoveu o confronto, patrocinado
pelo ditador e cleptocrata africano Mobutu Sese Seko, tido na época como sétimo
homem mais rico do mundo. A luta foi marcada para 30 de outubro de 1974 na
terra de Mobutu, o Zaire, aquele país de bandeira semelhante à do Brasil
derrotado pouco antes pela Seleção de Zagallo na Copa do Mundo. Numa nação com
renda per capita de US$ 70 e 35% de alfabetizados, um assento
perto do ringue era vendido por US$ 250. Cada pugilista receberia US$ 5 milhões
– e Foreman queria mais. O gongo estava marcado para as 4 da manhã, hora local,
para fugir do calor e pegar o horário nobre na TV americana. A plateia de 60
mil incluía a nata do boxe e do jornalismo esportivo: o ex-campeão Joe Frazier,
repórteres como George Plimpton, Hunter Thompson e, estrela maior, Norman
Mailer. Ele recebera, diziam, US$ 1 milhão pelo último livro – “campeão dos
escritores” foi como King o definiu. Graças à fama, Mailer pôde acompanhar de perto
a preparação dos dois rivais. Ensaiou até treinar corrida com Ali, por quem
torcia.
No ano
seguinte publicou A luta, um desses livros que não conseguimos
largar. Mailer escreve sobre si mesmo na terceira pessoa. Vira Norman. Em Nova
York, Norman investiga a filosofia banto para compreender as ideias ancestrais
que moviam Ali e o mundo do boxe, quase só de negros. Aprende os conceitos de
muntu (vida no ser), kuntu (força das coisas), n’golo (força vital) e Nommo
(palavra). Descobre a força de seus próprios preconceitos. Na África, entende
que o boxe para Ali é apenas um meio de atingir seus fins político-religiosos.
É Don King, bigodes e cabelos espetados, em seu linguajar viscoso, quem decifra
Ali para Norman: “A luta atrairá 1 trilhão de fãs, pois Ali é russo, Ali é
oriental, Ali é árabe, Ali é judeu, Ali é tudo o que a mente humana é capaz de
conceber. Ele atrai todos os segmentos do nosso mundo. (…) Seja o que for que
Ali estimula, Ali motiva até mesmo os mortos”. O fascínio de Ali é universal a
ponto de despertar a paixão de todos, até um judeu como Norman, por um
muçulmano negro, convencido e falastrão.
Norman
entende, enfim, a essência do boxe. É um esporte não só de força, mas de tensão
e estratégia. Psicológico como o xadrez. Ali passara dias provocando Foreman.
“Vou dançar, e vou dançar, e vou dançar e dançar.” Começa a luta e ele faz o
contrário. Abandona o centro do tabuleiro e se acomoda nas cordas, afrouxadas
antes do primeiro assalto. Deixa Foreman bater, e bater, e bater. Vez que outra
faz um gambito e ataca, desfere golpes bem colocados. Provoca com olhares e uma
série interminável de impropérios. Ali não para de falar. A energia de Foreman
vai esgotando. Até que, quase no final do oitavo assalto, Ali acerta-lhe o
queixo e sai das cordas. Move as peças para o centro do tabuleiro. Dispara
socos velozes, duros, três direitas e uma esquerda. Aí é Foreman quem vai às
cordas. “E então um grande projétil, do tamanho exato de um punho dentro de uma
luva, penetrou no meio da mente de Foreman, o melhor soco daquela noite
espantada, o soco que Ali guardara por uma carreira”, escreve Norman. “A
vertigem tomou conta de Foreman e o revolveu. Ainda dobrado pela cintura (…),
começou a desmoronar e a ruir e a cair, mesmo não querendo ir ao chão.” Ao
longo de “dois desmoronantes segundos”, Foreman vai das cordas à lona. A
plateia delira: “Ali, buma iê”. Xeque-mate.
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